O FIM DO FIM DO MUNDO

         Hoje o dia amanheceu silencioso - um silêncio que chama à atenção Dora levantou-se tentando, ainda, entender o sonho que tivera à noite passada. Sentia seu corpo dolorido, a cabeça parecia explodir e, tudo a sua volta girava. Caminhou até o banheiro, cambaleante, sentia náuseas e tremia, ao se olhar no espelho viu seu rosto transfigurado, não era mais a Dora de rosto meigo e cabelos cacheados; era, agora, um ser estranho com ares indígenas. Seu rosto pintado com cores fortes contrastava a pele morena que tomou o lugar da brancura angelical tão comumente vista por ela todas as manhãs naquele mesmo espelho. Segurou com força na borda da pia tentando não cair, as imagens em sua mente eram tenebrosas, sentiu o chão sumir debaixo de seus pés, tremendo e suando frio, vomitou.
            Não saberia dizer quanto tempo ficou desmaiada; despertando, levantou-se, ainda tonta, e tomou um banho quente na esperança de que todo aquele mal estar fosse pelo ralo junto com a água que escorria pelo seu corpo. Saiu do banho sentindo-se um pouco melhor, mas a breve tranquilidade deu lugar ao terror quando olhou-se novamente no espelho, a pintura não havia saído de seu corpo, mesmo após o longo banho,  não estava diferente só por fora, seu espírito parecia ter dado lugar a um outro, embora sua consciência percebesse a diferença, uma outra força queria comandar seu corpo. Não conseguiu comer nada, arrumou seu cabelo de forma exótica, prendendo-o com os dentes de marfim de um elefante que enfeitava o lavabo, vestiu-se, encheu a mochila de roupas, objetos pessoais, material de higiene e um antigo cobertor que sua mãe dera-lhe de presente ao voltar do Chile. Olhou pela janela de seu apartamento e viu o mar tranquilo e sereno. Sua cabeça ainda doía, passou a mão pela testa, como querendo arrancar a dor, respirou fundo e saiu batendo a porta atrás de si.
        O mal estar que sentia foi, aos poucos, dando lugar a um vigor indescritível. Enquanto caminhava nas ruas as pessoas a olhavam com ar de recriminação, imaginando que ela era mais uma dessas garotas que se envolvem com drogas ou seita inexplicáveis. Entrou no quiosque de seu banco e retirou o máximo de dinheiro possível, pegou um táxi rumo ao aeroporto; somente quando o taxista perguntou para onde ia é que se deu conte de que não havia falado com ninguém naquele dia tão estranho. Sua voz saiu de forma gutural falando apenas o nome do aeroporto Tom Jobim. O Rio de Janeiro parecia para ela uma Terra estranha e inóspita. Percebia que o motorista a olhava pelo espelho com ar desconfiado, quando o encarou, o homem congelou e empalideceu, pois vira nela o que ninguém mais havia visto.  Uma deusa maia.
          Falando o português já com uma certa dificuldade, comprou sua passagem para o México, esperando no saguão do aeroporto, sentiu fome. Caminhou por entre as lojas de conveniência e tomou seu desjejum às 14h. Era 21 de dezembro de 2012, sabia que tinha apenas dois dias para chegar a seu destino, não sabia onde nem como, mas sentia que uma força imperiosa a impelia para lá chegar. Enquanto voava, no solo algum algumas tragédias se anunciavam, povos adoeciam misteriosamente, sem remédios que os pudessem curar, eram dizimados da face da Terra; animais se entredevoravam e pragas destruíam as plantações. Buracos enormes se abriam engolindo tudo que estivesse por perto, uma névoa escura já começava a cobrir a atmosfera.
            Desembarcou no aeroporto no México e, como um zumbi, entrou num táxi rumo ao oceano. Chegando à praia viu que um tsunami havia varrido a costa; não sentiu nenhuma surpresa, agora seu espírito já cedera o corpo àquele que evidentemente tinha uma missão a cumprir. Precisava de um barco, decididamente caminhou pela costa mexicana à procura de um barco. Sentou-se perto dos destroços olhando fixamente o horizonte. Sabia de algum modo que havia uma ilha distante na qual precisava chegar. O táxi havia ido embora e, em meio a confusão de cacos e pessoas à procura de seus pertences e parentes desaparecidos viu, ao longe, algo que parecia ser um barco da guarda costeira. Levantou-se com novo ânimo e caminhou apressadamente pela beira mar sentindo as marolas molharem seus pés e a barra de suas roupas. Sua mochila pesava, a cabeça latejava, os tênis encharcados pesavam, o estômago já sentia a falta do alimento necessário à vigorosidade do corpo. Mas, nada a fazia parar; uma força estranha a compelia a caminhar obstinadamente em direção ao barco avistado. Duas horas de caminhada e lá estava ele! Parado, como se a esperasse para juntos cumprirem o destino. Sondou a embarcação e constatou que não havia ninguém a bordo. Olhou o céu, àquela altura o sol já estava se pondo e o céu vermelho unia-se ao mar formando um cenário digno de uma grande tela. Dora subiu a bordo, deitando a pesada mochila no convés, correu até a cabine do piloto, estava vazia. Ouviu um ruído vindo de baixo de seus pés, apurou os ouvidos e pôde ouvir algo como um gemido; seguiu o som descendo as escadas e se aprofundando para dentro da embarcação, seu coração batia forte, mas um poder tomava conta de seu corpo e espírito dando-lhe uma força descomunal e imune a qualquer tipo de medo. Não demorou para encontrar a fonte do ruído: um marinheiro ferido se contorcia no fundo da casa de máquinas. O motor do barco havia soltado uma peça e batido em cheio em seu olho direito, ele havia estado desmaiado por horas e despertara exatamente quando Dora inspeciona o barco. Ela correu até ele e amarrou um pedaço de sua blusa no olho estourado, ele havia perdido muito sangue enquanto esteve inconsciente, não conseguia falar, mas apontou para Dora uma caixa vermelha na parede oposta; virando-se ela pôde ver uma caixa salva-vidas por trás de grosso vidro. Levantou-se, olhou em volta e pegou um extintor de incêndio batendo com força, quebrou o vidro e apanhou a bolsa de primeiros socorros. O marinheiro se contorcia de dor enquanto ela limpava o ferimento, aplicou-lhe uma injeção de analgésico e logo estava fazendo um belo curativo no buraco que restou no rosto do pobre homem. Colocou-o deitado numa cama minúscula e lavou todo aquele sangue no chão. O homem parecia dormir profundamente quando ela havia terminado de limpar tudo e deu a partida no motor que não pegou. Num gesto de impaciência coçou a cabeça e voltou para olhar o motor - em outros tempos sentaria e choraria.
         Mas agora ela não era só a simples e brincalhona Dora, era alguém que ainda não sabia direito, apenas sabia que tinha uma missão a cumprir. Olhou o motor com atenção e percebeu uma falha, certamente era a falta da peça que se soltara e atingira o marinheiro. Olhou por todo lado e não encontrou nada; após alguns minutos analisando a situação, olhou para cima e lá estava a peça encravada no teto. Subiu imediatamente numa escada improvisada e pegou a peça; com um salto já estava de volta perto do motor com a peça na mão; seu salto fez a embarcação balançar um pouco e o homem gemeu, mas permaneceu dormindo. Como uma mecânica experiente repôs a peça no lugar e deu a partida no barco. Com muito custo ele desencalhou e, numa manobra de dar inveja, o barco se pôs a caminho de seu destino.

            Enquanto seguia mar adentro, Dora retirou seu lanche da mochila e comeu avidamente, trocou os tênis molhados e seguiu guiando o barco que parecia saber seu destino, ela precisava apenas olhar para frente e pilotar sem mapa, bússola ou ajuda do rádio. Apenas seguia em frente, deixando para trás um continente em ruinas. Naquele momento, em todo o mundo, coisas terríveis estavam ocorrendo e os chefes de estados não sabiam mais o que fazer para socorrerem seus compatriotas. Terremotos, maremotos, tsunamis, furações e muitas doenças acometiam muitas pessoas enquanto outras estavam a salvo como que por milagre.

           O dia já estava amanhecendo quando Dora avistou uma ilha no meio do Pacífico Sul, uma ilha até então desconhecida, não só para ela, mas para toda a população do planeta Terra. Ao ancorar na costa da ilha, Dora viu um monumento que parecia um tigre olhando para uma espada, a pedra fora entalhada por antepassados Maias, agora ela sabia quem era. Não era apenas a Dora daquela época, havia em seu espírito uma enorme porção da rainha Rhamatyz da última era, antes dos Maias desaparecerem deixando seus templos e seu calendário que apontava para aquele 23 de dezembro de 2012. 

         Comeu o que restou da comida que trouxera, alimentou o marinheiro que já havia despertado, deu-lhe mais remédio, trocou o curativo e disse-lhe para ficar na cama - aconteça o que acontecer, fique aqui dentro, vai estar seguro. Eu voltarei e o levarei para casa disse com voz gutural. Ainda muito fraco, o homem meneou a cabeça e deitou-se novamente. Estava assustado e perplexo ao ver aquela figura tão estranha a cuidar dele. Dora saiu do barco e caminhou em direção à escultura, o sol brilhava intensamente, olhando o céu ela viu outro corpo celeste que disputava o espaço com o sol; imaginou que fosse a lua, mas virando-se pode vê-la logo atrás daquele que seguia em direção ao sol. Era Vênus que corria como um cavalo alado... Nesse instante, sua mente voltou a milhares de anos e a viu escrevendo e desenhando aquela cena. Correu em direção ao monumento, precisava estar no topo ao meio-dia, agora sabia porquê tinha que estar ali. Iniciou a subida íngreme do lado oposto do tigre, foi onde encontrou brechas para apoiar os pés e as mãos. Não demorou muito estava no topo do monumento que parecia uma espada. Atrás dela, o tigre espreitava. A terra parecia girar com maior velocidade do que o normal, os três astros brilhavam intensamente no céu. A lua, redonda e brilhante, já estava quase encostando no planeta Vênus; este, por sua vez já estava quase iniciando o eclipse do sol. Ali, no seu reino, Rhamatyz olhava o céu. No horizonte as águas tremulavam em rebuliço não perceptível de onde ela estava. Aos poucos Vênus foi encobrindo o sol, enquanto a lua o encobria, e, assim os três astros ficaram sobrepostos enquanto a escuridão tomava conta do Planeta, Rhamatyz sentou-se e cobriu-se com o cobertor chileno que ganhara de sua mãe. Se alguém a olhasse de longe veria uma perfeita rainha Maia. Lá de cima ela viu o barco balançar e sentiu a terra estremecer. Os outros planetas também seguiam sua rota e, saindo de seus eixos realinhavam-se todos. Aos poucos, ela pôde ver cada planeta se alinhando como se os visse por um telescópio. Com uma visão clara e límpida, podia ver desde Marte a Plutão, viu também unindo-se a estes outros três planetas que a partir de agora fariam parte do nosso Sistema Solar. O vento soprava com força e Dora/Rhamatyz permanecia imóvel sobre seu templo. A escuridão tomou conta do planeta, enquanto Dora olhava o movimento dos astros, as pessoas temiam a morte iminente, porém nem todas morreriam. Pois, àquelas que se mantinham firmes e ajudavam os feridos, oravam e mantinham-se sóbrias e inabaláveis quanto às perdas materiais, preocupando-se apenas com o bem estar, a segurança e a proteção de outras pessoas e animais, estava reservado um futuro melhor.
           Era chegada a hora em que tudo que fosse maléfico ao planeta Terra seria expurgado. Gases poluentes eram aspirados e formavam bolhas enormes que, aos poucos iam se afastando da Terra e se uniam a outros gases e poeiras, que alguns séculos mais à frente formariam outros planetas. Assassinos e toda sorte de malfeitores eram sugados para mundos inferiores, onde deveriam cumprir um processo evolutivo, vírus e bactérias eram exterminados por raios violetas que varriam a Terra numa faxina complete. TVs anunciavam precariamente o fim do mundo enquanto Dora assistia a um recomeço. Num processo lento, mas eficaz, o planeta ressurgia como um paciente de UTI que sai do coma. Continentes se reajustavam à forma que tiveram a centenas de milhões de anos e todos os povos estavam reunidos novamente em um só continente; todavia, o que era norte tornou-se sul, e o que era sul tornou-se norte. Geleiras derreteram enquanto mares foram congelados, as pessoas se agarravam à fé em Deus e aquelas que permaneceram em suas casas naquela noite e nos dois dias subsequentes sobreviveram.

         Ao final de tudo Dora estava exausta, mas feliz por te podido ver confirmada a profecia de seu povo. Uma profecia que não fora bem entendida e distorcida por muitos durante séculos. Olhou para baixo e viu o barco ainda ancorado, viu também o marinheiro que a olhava perplexo, tentando entender onde estava. Calmamente ela desceu do monumento e caminhou de volta ao barco sendo observada pelo homem que agora parecia estar curado. Ao vê-la subir a bordo ele perguntou: “Onde estamos? Quem é você, moça?” Dora não respondeu, era Dora novamente e nem mesmo ela sabia onde estava. Apenas olhou para ele e constatou que seu olho estava curado, e mais que isso. Restaurado. Enxergava perfeitamente. Ao seu silêncio, o marinheiro insistiu: “Não deu para ouvir direito, mas no rádio está anunciando o fim do fim do mundo; o que quer dizer isso?” Que o mundo não acabou retrucou Dora o mundo apenas renasceu, acho que nos deu uma nova chance de tratá-lo melhor. Temos um longo caminho de volta, vejo que seu olho melhorou. Pode pilotar? Estou muito cansada.






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