O DESAFIO
Todos os dias o senhor João entra em seu
carro jurando que não vai ficar nervoso no trânsito, pois ele é um senhor muito
calmo. Está sempre de bem com a vida e cumprimenta a todos com simpatia. Adora
criancinhas e tem sempre um sorriso nos lábios. No entanto, ao entrar em seu
carro e seguir para o centro da cidade onde trabalha é tomado por um sentimento
terrível de destruição e ansiedade. Sente-se apavorado com isso, tem medo de cometer
algum desatino. Hoje, em especial, rezou antes de pegar o volante, pedindo aos
santos que controlassem seus nervos.
Mas, pelo visto, rezar não resolveu a situação; foi só entrar no carro,
já veio aquele sentimento mesquinho e o senhor João se transformou no senhor
Papão. Na saída de casa já ficou irritado com uma velhinha que atravessava a
rua com uma vagarosidade inconcebível, e logo esbravejou: “Sai da frente
tartaruga!” Pegando a via principal, ficou ainda mais revoltado com um engarrafamento
causado por um motorista que havia esquecido de abastecer seu carro. Isso foi a
gota d'água que faltava, o senhor João, indignado xingava, esbravejava, metia a
mão na buzina e perguntava-se por que é que seu carro não podia voar.
Depois de alguns minutos, que para ele pareceu uma eternidade, chegou
finalmente ao trabalho. Desceu do carro ainda um pouco vermelho, pois quando
ficava nervoso seu rosto parecia um tomate maduro, seguiu para o prédio onde
trabalhava já fazia vinte anos. Entrou no elevador e, já aí, voltou a ser o
senhor João de sempre, cumprimentando seus colegas de trabalho com o BOM DIA
mais simpático da empresa.
Entregou-se ao trabalho de corpo e alma, lá fora as buzinas, freadas e
arrancadas bruscas dos carros que passavam não o incomodavam. Fim de
expediente, o senhor João despede-se amigavelmente dos companheiros;
cantarolando, desce as escadas, pois preferira exercitar-se um pouco ao invés
de usar o elevador. Parecia feliz, era o bom senhor João de sempre. Pronto, chegou
ao carro, abriu a porta ainda cantando e foi só sentar-se ao volante, já
começou a sentir um leve desconforto, era a transformação que já vinha. E, aí,
estava o amigável senhor João prestes a encarar o desafio de seguir no trânsito
sem cometer nenhuma asneira.
Já sentia um leve formigamento nas mãos só de pensar nos motoqueiros, no
engarrafamento, nos meninos vendendo doces no sinal, no imbecil do carro da
frente que não via o sinal abrir... Pensando nessas coisas foi ficando cada vez
mais nervoso, mais agitado, mais ansioso; começou a transpirar sentindo um mal
estar diferente, lembrou-se de nunca ter sentido tal sensação.
Respirou fundo, tentando controlar a ansiedade que tomava todo seu corpo
fazendo-o sentir um pouco de medo. Pensou em rezar novamente e disse aos seus
botões “Estou ficando velho e cansado, já não sou mais o mesmo. Meu Deus,
ajude-me a chegar a casa!” Começou a rezar, ia rezando as orações que se
lembrava vagamente, não era dado a essas coisas.
Hoje, estava
diferente, sentia-se frágil e amedrontado. No primeiro sinal, de volta para
casa, já estava vermelho novamente, a cada buzinada atrás dele, sentia uma
pontada no coração; no engarrafamento, já se sentia tonto e não conseguia enxergar
com clareza, o calor dentro do veículo era insuportável; de repente, se viu em
apuros, suas vistas escureceram-se e ele caiu sobre o volante, pressionando a
buzina. Já estava morto, não suportou o desafio do trânsito, enfartando. Seu
corpo, caído sobre a buzina, indignava os outros motoristas, também
estressados, xingavam-no... E, assim,
partiu dessa vida, o bondoso senhor João, sem entender a transformação que
sofria ao pegar o volante e enfrentar o desafio do trânsito.
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