PASSA BOI, PASSA BOIADA!
― Depressa! Venha ver a boiada tá
vindo...
Era meu irmão, aos berros, chamando
para ver a boiada de seu Joaquim que passava em frente à nossa cancela.
Ficávamos eufóricos ao ouvir o berrante que ele tocava só pra gente ouvir.
Pois, seus bois eram tão obedientes que nem precisava mais do berrante. Porém,
para se chegar a esta perfeição de obediência, os coitadinhos dos bois sofreram
muito.
De longe podíamos ouvir a voz rouca do
boiadeiro. A poeira levantava com a desordem dos bichos e, no meio da confusão,
o garruchão entrava em
serviço. Espetava um garrote teimoso ou uma vitela
desenfreada e seu Joaquim gritava:
― Eta cabrunco de garrote teimoso! Vai
lamparão, pega a reta! _ E era outra garruchada.
Às vezes, os bois pulavam tanto que a
poeira embaçava tudo e quando se dissipava, a boiada estava longe. Então
ficávamos esperando a volta à tarde. Foram anos de luta de seu Joaquim com seus
bois, mas para nós crianças do interior era a única diversão. Certa manhã,
depois da passagem da boiada envolta em nuvem de poeira, ficamos ainda
escarrapachados na cancela ouvindo os xingamentos do sofrido Joaquim quando, de
repente, ouvimos um berrinho fraco perto da cerca. Meu irmão, num pulo só
chegou perto do bezerrinho e viu que sua perna estava quebrada. Na confusão o
coitadinho havia levado uma pisada e seu Joaquim nem viu.
― Vamos levá-lo para casa. Disse meu
irmão, eufórico.
Pensei que mamãe fosse ralhar com a gente.
Qual nada! Ela ficou comovida com o bichinho machucado e nos elogiou por ter
nos preocupado com o bezerro.
Cuidamos dele durante todo o dia, cada
um cuidava um pouquinho. Mas ninguém arredava pé do curral. Quando o sol
começava a se pôr, ouvimos o berrante de seu Joaquim, era boiada voltando.
Fiquei com o bezerrinho e meu irmão correu à cancela para avisar ao dono que
seu bezerro estava lá em casa.
Nesse momento, mamãe apareceu com uma
mamadeira que ela mesma havia improvisado. Era um litro de leite com um bicão
amarelo imitando a teta da vaca. O
bezerrinho mamou tudo e mamaria mais se mais tivesse. Mamãe colocou remédio em
sua perna, uma poção de arnica amassada com um pouco de azeite, depois enfaixou
bem a perna dele e ficou acariciando sua cabecinha. Ele olhava para ela com
olhos lacrimejantes. Agradecia os cuidados com aquele olhar lânguido.
Meu irmão Paulo voltou como um vento
de tempestade, seu sorriso largo denunciava a notícia que trazia. Seu desejo
era o meu também. Falamos nisso o dia todo. “Seu Joaquim bem que podia dar ele
pra gente. Eu cuidaria bem dele.” Mamãe perguntou:
― Então, seu Joaquim não vem buscá-lo?
― Não, mamãe. Ele deu o bezerrinho pra
gente. Disse que é um filhote sem mãe. Ela morreu quando ele nasceu. É um estorvo, só atrapalha a boiada e com a
perna quebrada vai acabar morrendo. Podia ficar pra mim e Frederico.
Minha mãe concordou e eu vibrei com a
notícia. Teríamos um bezerrinho só nosso. Foi difícil entrarmos para tomar
banho naquela noite. Queríamos ficar ali e cuidar do bichinho. Meu pai chegou e
disse que se não obedecêssemos à mamãe, levaria o bezerro embora. Devolveria-o
a seu Joaquim no primeiro raio de sol. Obedecemos. Mamãe arranjou umas estopas
e fez uma cama bem macia para ele. Tomamos banho, jantamos e rezamos a oração
da Ave-Maria com o pensamento lá fora. Fomos para a cama cedo, a fim de
dormirmos logo para a noite passar mais rápido. Mas o sono não vinha.
― Acho que vou chamá-lo de perninha.
Disse eu no alto de minha inocência. Meu irmão soltou uma gargalhada e
perguntou se eu estava com febre e, como todo irmão mais velho, não deixou que
lhe desse esse nome.
― O nome dele vai ser.... Hum, deixe
-me ver. Já sei! Fred. Em sua homenagem. Está bem Frederico?
Daquele dia em diante meu irmão passou
a ser o meu herói. O melhor irmão do mundo! Com o coração quase pocando de
alegria, adormeci.
Acordamos cedo para cuidar de Fred. A
mamadeira já estava preparada pela nossa mãe. Para nossa surpresa Fred já
estava de pé e com muita fome. O remédio de mamãe era bom mesmo! Mamou um litro
inteirinho e quis mais. Mamãe trouxe mais leite que foi literalmente devorado.
Os olhos de Fred agora tinham um brilho diferente, demonstravam amor e
gratidão.
Com o tempo, Fred recuperou-se por
completo e cresceu tanto que causava inveja aos vizinhos. Mesmo com todo aquele
tamanho, continuava nosso amigo e nos seguia para onde quer que fôssemos.
Crescemos juntos, mas ele se tornou um boi antes que me tornasse um homem.
Numa época de vacas magras, sem
dinheiro e com uma seca que dizimava a roça e a criação, papai decidiu vender
Fred antes que ele morresse de fome. Um açougueiro lá da cidade comprou o meu
amigo; a partir desse dia me tornei vegetariano.
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